sexta-feira, 20 de maio de 2011

Informação biográfica e apreciação literária


O P.e Meira Veloso nasceu na Póvoa de Varzim e lá viveu muito tempo, mas chegou a emigrar para o Brasil, onde ensinou línguas e filosofia. Na Póvoa, foi professor no Colégio Povense, capelão da Misericórdia, além de se dedicar ao jornalismo e à poesia.  Esteve na origem do escutismo local, juntamente com o Dr. Abílio Garcia de Carvalho. Foi  pároco de Modivas e Aveleda, em Vila do Conde. Faleceu de tuberculose com 52 anos, em Fevereiro 1934. Na altura, pôde-se ler no Idea Nova (10/2/34) a seu respeito:
.
A sua morte foi a de um justo, edificou, emocionou… em lucidez de espírito invejável, conhecendo com horas de antecedência que se aproximava o seu momento final, acolheu a morte sem desfalecimento, com fé e confiança, e transpôs os umbrais da eternidade orando com fervor e beijando o seu querido crucifixo e esboçando tenuemente com a dextra cruzes sobre os que lhe assistiam à agonia.
Dedicou-se o Padre Meira Veloso desde muito novo à poesia e ao jornalismo, em que foi mestre, desenvolvendo uma actividade rara.
A sua obra anda dispersa por jornais e revistas da província, Lisboa e Porto, e pelo Brasil. Tinha concluídos dois livros de versos, em que mostrara especial predilecção pela sátira.
Colaborou em quase todos os jornais do seu tempo nesta vila, sendo sempre muito lidos, muito apreciados e muito elogiados os seus artigos e as suas poesias. Erros, vícios, maus costumes tinham-no pela frente em ataque ardoroso, impetuoso, invencível. A sua pena encontrava-se continuamente em riste para defender a Religião, a Pátria e a Póvoa.
Era uma sentinela vigilante no campo católico, pronto a defender a Igreja das investidas dos seus adversários. E fazia-o com a fé mais ardente.
A sua linguagem era erudita, impecável, brilhante. Estilo vivo, másculo, variado. Cultivava todas as modalidades. Desejava, estimava, provocava a polémica, em que saía sempre vencedor pelos argumentos que aduzia, pela forma que adoptava.
O jornalismo poveiro sente a perda dum elemento precioso.


Esta apreciação deixa de fora um dos aspectos mais evidentes da poesia o P.e Meira Veloso, o seu carácter anti-lírico e anti-romântico. Ela não se alimentado da associação fantasiosa de imagens, é antes marcada por forte viés realista, prosaico até. Em consequência disso, é também muitas vezes narrativa e aproxima-se ocasionalmente do texto dramático.

Mas não se pense que decalca temas ou mesmo processos parnasianos. A inspiração do P.e Meira Veloso é real, ele não faz poesia a olhar para o que os outros já escreveram: segue um caminho muito seu, original.

Embora incompleta, a amostra que se segue da sua produção poética já dá uma ideia de como é injusto que a Póvoa tenha esquecido o poeta P.e José Meira Veloso.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Lendas

A AVEZINHA DO EREMITA

(Canção popular alemã)

Houve outrora um eremita
Cuja maior alegria
Era dizer esta prece:
- Ave Maria!

Tinha consigo na cela
Uma ave que todo o dia
Cantava como o seu dono:
- Ave Maria!

Duma vez fugiu a ave
Da sua prisão sombria
E foi cantar p’ra um cipreste:
- Ave Maria!

Triste, o asceta a perseguiu;
A avezinha lhe fugia…
E por fim subiu cantando:
- Ave Maria!

Subiu, subiu nos espaços;
Mas um abutre descia…
Caçou-a e ela gritou:
- Ave Maria!

Espantado o fero abutre
As suas garras abria…
Jamais ouvira cantar:
- Ave Maria!

Salvou-se a pobre avezinha
E então com mais alegria
Fez ouvir o doce canto:
- Ave Maria!

Estava o eremita na cela
Submerso em melancolia.
Entra a avezinha, e os dois cantam:
- Ave Maria!

Virgem, não deixaste o abutre
Matar a ave que dizia
A linda oração sublime:
- Ave Maria!

Pois também do pecador
Tu serás defesa e guia
Quando ele rezar contrito:
- Ave Maria!


A PALMA DA GLÓRIA

De todos os infantes de Belém e arredores
O rei da Galileia decretara a matança.
Avaro de seu trono, refremia em rancores,
Ao saber que nascera dos homens a Esperança.

Mas um anjo do empíreo, por mandado divino,
Veio falar em sonhos, de noite, a S. José:
- Levanta-te. Depressa! Leva esse Menino,
Que o quer matar Herodes, espírito sem fé.

Foge para o Egipto com  Jesus e Maria,
Até que eu vá dizer-te que é tempo de voltar.
Obedece o santo. Pouco depois partia
A Sagrada Família, sob as bênçãos do luar.

Partiram… para onde? Nem sabiam sequer.
Para longe, muito longe. Para onde Deus mandava
E onde aquele Menino pudesse, alfim, viver
Livre dos feros ódios de Satã inspirava.

Foram andando, andando… passaram as fronteiras
Da terra prometida. Lá muito no deserto,
Um dia, descansaram junto duma palmeira,
Como se fosse a sombra dum guarda-sol aberto.

Vinham tão fatigados! A Virgem apontou
As tâmaras ocultas sob a verde folhagem
E para o casto esposo, sorrindo, murmurou:
- Quem nos dera esses frutos, neste ponto da viagem…

- E eu, diz o patriarca, penso também nas águas
Do país da Judeia, nossa terra natal
Que ardentíssima sede! – Diziam estas mágoas
E Jesus descansando no colo maternal.

Mas levantou-se o infante nos joelhos da Senhora;
Apoiou as mãozinhas no tronco da palmeira
E bradou, imperioso: - Desejamos, nesta hora,
Que nos dês os teus frutos. Baixa a fronte altaneira!

O gigante do ermo dobrou a heróica fronte:
Colheram-se os seus frutos. E Jesus disse então:
- Ergue-te! A teus pés faz britar agora a fonte
Das águas cristalinas, filha da solidão!

Como Jesus der a ordem, assim fez a palmeira,
E na suave linfa José pôde beber.
No entanto àquela árvore amiga, hospitaleira,
O Salvador do mundo deseja agradecer.

- Porque teus frutos deste, palmeira benfazeja,
Porque nos deste a água de teus mananciais,
Quero que um destes ramos imediatamente seja
Pelos anjos plantado nos édenes celestiais.

De hoje para o futuro, todo o que triunfar
Nas lutas desta vida pelo ideal do amor
Com a tua folhagem o virão diademar
Os anjos do Senhor.

DIMAS


I

Quando a Sagrada Família
Fugia para o Egipto
A fim de salvar Jesus,
Tesouro dos Céus bendito,

Aconteceu numa noite
Transviar-se do caminho,
Não achar onde abrigar-se,
Ver-se no ermo, sozinho.

Andaram horas e horas,
Buscando asilo, perdidos,
Mas por fim foram bater
A uma casa de bandidos.

A mulher do capitão,
Que tinha muita bondade,
Recebeu os santos hóspedes
Sem nenhuma hostilidade.

José e a Virgem Maria
Mal podiam esperar
Um tão carinhoso trato
Em semelhante lugar!

Tinha a piedosa hospedeira
Um filho amado também,
A quem apertava no seio
Como só faz uma mãe.

Dimas era o nome dele.
Era dum branco nivoso
Todo o seu corpo tenrinho:
O infeliz era leproso.

Mas talvez por isso mesmo,
Que ele era um pobre doente,
A boa mãe lhe queria
(Quem sabe?) mais ternamente.

Para lavar a Jesus,
Pede água a Virgem formosa;
Logo a mulher do bandido
Lha vem trazer, cuidadosa.

Então, aquela criatura,
Fitando José e Maria,
Fitando o doce Jesus,
Sente não sei que alegria.

A sua alma adivinhava,
Nesse grupo solitário,
Alguma coisa de excelso,
Um mistério extraordinário.

Acreditou nessa esperança
Que ao seu coração fulgia,
Parecendo vir do céu
E dos olhos de Maria.

Tomou a água que servira
Para lavar Nosso Senhor
E lavou nela o filhinho,
O seu doente, com amor.

Logo a carne do petiz
Ficou rosada e formosa,
E num infinito júbilo
Aquela mãe extremosa.

II

Passaram-se muitos anos
E, nos braços duma cruz,
Se encontrou Dimas um dia
Perto do meigo Jesus.

O pobre Dimas não tinha
Agora a carne leprosa:
Tinha a lepra do pecado,
Que é muito mais perigosa.

Mas – como outrora sua mãe –
Esse homem viu em Jesus
Uma auréola misteriosa,
Feita de divina luz.

Confessou-lhe sua esperança;
E, após, o sangue dum Deus
Lavou-lhe a lepra da culpa,
Franqueou-lhe o reino dos Céus!


A Perdiz de S. João


De uma vez, S. João, o apóstolo condor,
Coração virginal, flamante de amor,
Na ilha do exílio, frente ao presbitério,
Mimava uma perdiz com infantil gaudério.
Perto da igreja um caçador passou então,
Ingénuo latagão,
De cabeleira flava,
Pés descalços, o arco ao ombro, à cinta a aljava.
Ao ver o Evangelista em folgar tão risonho,
Quedou-se em grande pasmo. Era verdade ou sonho?
Tão austero pastor, santo qual serafim,
Rindo e brincando assim?

Mas o apóstolo viu e disse em brando acento:
- Meu filho, não te assombre o meu divertimento!
Porque me olhas surpreso?
Diz-me, acaso tens teu arco sempre teso?
- Não - volve o caçador,
Insciente do valor
Da questão singular.
- A fim de descansar,
Distendo-o a cada passo…
- Pois, filho, eis o que eu faço:
Minha mente distendo e repouso em doçuras,
Por que possa depois adejar nas alturas.

Epigramas


O REINADO SOCIAL

Todo empáfia, jurava o André barbeiro,
Numa arenga a esvurmar sabedoria,
Que o tempo venturoso ainda viria
Do reinado social no mundo inteiro.

Ouvindo o belo sonho, tão fagueiro
O pasmado freguês, numa alegria,
Pergunta se está perto o grande dia,
Se ao menos o conhece pelo cheiro.

- Bem longe! – diz o Fígaro eloquente.
Talvez milhares de anos. Quando a gente
Tiver toda por norma o doce amor!...

O cliente afrouxou no seu prazer.
- É tarde!... Quando isso acontecer,
Mande-me aviso a casa, por favor?


DILETANTISMO

Tal como a Ciência, a Fé te inspira horror;
Andas cantando pois, aqui e ali,
A aparência formosa, a suave cor…
Um fraco, em suma. Tenho dó de ti.

Mas não proclames com sorrir perverso
Qua a arte mais sublime de viver
É errar à superfície doo Universo,
Sem destino, ao de leve, por prazer.

O diletante mais feliz que o crente?
Superior ao sábio e a toda a gente
Que procura a Verdade? Tu treslês!

Que ao certo nada saibas – grande mal!
Mas exaltar a dúvida por ideal…
É mais que cepticismo: é insensatez.


EXEGESE EVANGÉLICA

Para Londres no rápido viajavam
Um presbiteriano e um metodista.
E, com a Bíblia à vista,
Sobre um texto divino disputavam.

"Se na face direita alguém te bate,
Oferece-lhe a esquerda" era a lição
Que gerava a questão,
Já séria como o fumo de um combate.

O literal sentido preconiza,
Convicto, o metodista; o outro rejeita
A difícil receita;
E em vez de surdir luz, cresce a geriza.

Então, para apressar o desenlace,
Zás! o presbiteriano no colega
Um bofetão pespega,
"Vamos", diz-lhe, "apresenta-me a outra face!"

Pronto! O sequaz da letra lhe obedece
E outro tapa recebe, desabrido;
Mas não se diz vencido:
O Evangelho ali está e o favorece.

"Com a mesma medida que empregares
Serás medido", cita. E tão do imo
Lhe torna o duplo mimo
Que um canino lhe arranca e dois molares!


PELO SEGURO

Pouco antes de expirar, a pobre velha
Chama o filho, um magnata protestante:
- Vem cá, meu Melanchthon, aconselha
Tua extremosa mãe agonizante.

Como tu, rebentei o vil grilhão
Da obediência a Roma e seus enganos:
Como tu, reneguei a tradição
E adopto a nova ideia há muitos anos.

Mas agora vacilo. A hora extrema,
Compreendes, meu Melanchthon, é tão grave!
Dize, meu filho, resolve este problema:
Qual é o credo melhor, do céu a chave?

E o mestre, humilde, enfim, e digno e forte:
- Para esta vida, mãe, é uma doçura
O credo da Reforma. Para a morte…
A religião romana é mais segura.


ESPÍRITOS

Duma vez, na sessão de espiritismo,
Lembrou-se um pobre pai de perguntar:
- Meu filho, que em Coimbra anda a estudar,
Ficará bem no exame? Nisto eu cismo.

Depois de um certo espírito invocar,
O médio – o padre lá desse magismo –
Caiu num furibundo convulsismo
E, espumando, ladrou: - Sim! Vai ficar!

É chumbado o rapaz. Aceso em ira,
Larga o pai contra o vate: - Biltre imundo!
Que o rebento! Burlão! Voz da mentira!

E o médio volve então, com dó profundo:
- Não fui eu, meu senhor! A mim se vira?
Bata lá nessas almas do outro mundo!


VOCAÇÃO PERDIDA

Às vezes a avelha que vive sozinha
No triste casebre que está ali fronteiro,
Recolhe o bichame já perto à noitinha,
Vai dar um passeio com ar prazenteiro.

As mãos entretidas a fazer a meia,
O nariz adunco farejando em volta,
Faz quase e revista cá de toda a aldeia,
Como um comandante revistando a escolta.

Quando em seu caminho, com delícias dela,
Encontra pessoa da mesma feição,
Passa tempo infindo dando à taramela
Nas bisbilhotices da murmuração.

Remexe o segredo das vidas de todos,
Do facto mais simples faz crime graúdo,
Inventa notícias de escândalo, a rodos,
Deturpa, transforma, põe veneno a tudo!

Se ouve um sino ao longe tocando a finados,
Conta à sua amiga quem foi que morreu,
Diz o testamento do desventurado
E até os encargos com que faleceu.

Se é nalguma moça que se fala então,
Marca logo o dia do consórcio dela,
Vestidos e dotes… dá mesmo a razão
Porque ela não casa já como donzela.

Fonte inexaurível, cesto imenso e roto
De escuras novelas, essa velha moira!
Traz a freguesia sempre em alvoroço,
Sempre a língua em riste como uma tesoira.

Quando eu vejo, às vezes, passar a megera,
Farejando em volta, semeando a peta
Murmuro entre dentes: “Ah, quem te fizera
Redactor do ‘Diz-se’ de qualquer gazeta”


O ALPENDRE

Passeando no jardim, sorrindo amores,
Ela pediu ao noivo que mandasse
Fazer um grande alpendre que abrigasse
Das nevadas da Inverno tantas flores.

O noivo, pouco atreito a vãos temores,
Logo lhe respondeu que não receasse
Que o Inverno em seus frios apagasse
Dessa querida Flora as lindas flores.

- Ó filho, mas o alpendre? – Já está feito.
- E é grande? – Muito grande. Abrange um céu.
O mar podia ali fazer seu leito.

- Não é preciso tanto, penso eu…
- Sempre é melhor o excesso que o defeito.
- E onde está esse monstro? – O teu chapéu!


O FIM DO MUNDO

Não era mau sujeito o velho Ançã,
Mas era dum desleixo mesmo incrível!
Tinha o sestro ruim, incorrigível
De deixar tudo – tudo! – “pr’amanhã”.

Um dia, enfim – que a vida tem um termo –
O velho viu a morte aproximar-se.
Disseram-lhe: - era bom o confessar-se…
Não acha? Como esteja assim enfermo…

Mas ele contestou subitamente,
Repetindo o estribilho idolatrado:
- Pr’amanhã! Eu não penso ser urgente…

- É que (torna em voz doce, ao moribundo
Um seu compadre e amigo dedicado)
Anunciam para hoje o fim do mundo!

- Jesus! Algum cometa vem aí
Turrar no nosso globo? Está provado?
Verdade? É o fim do mundo? – É; para si…


O QUARTO DOS… SÁBIOS

Ao desdobrar da noite um mendigo estrangeiro
Foi bater ao portal duma casa de aldeia.
Recebeu gasalhado e partilhou da ceia:
Comeu alarvemente! Bebeu como um sendeiro!

Já finda a refeição, começou-se a rezar;
E então o peregrino, em ânsias, descontente,
Maldisse as tradições daquela santa gente
E deu vivos sinais de querer descansar.

- Mais non! E ergue-se audaz, Ce n’est pas ma croyance…
- Não quer ouvir rezar? – Moi, je suis de France! -
Apontaram-lhe o céu. – Pas de dieux! – e rugia.

- Joaquim! – ordena logo o patrão a um criado,
Leva já para o quarto este endemoninhado.
- Que quarto? – O dos ateus. Além, a estrebaria.


ELOGIO DA CIÊNCIA

Discutiam-se com certa impaciência
Os resultados dum recente invento.
Quando o doutor falou, tudo pôs tento.
O bom Galeno enalteceu a Ciência:

- É rainha, Senhores, e omnipotente!
Devassa oso Céus, conquista a terra e o mar!
Nada escapa ao fulgor do seu olhar,
Nem mesmo a vida de qualquer semente!

- Melhor, doutor, a própria vida cria –
Aprova um dos ouvintes. – Outro dia,
Verifiquei a coisa numa feira.

Sublime máquina! Fiquei pasmado…
De um lado entrava feno, do outro lado,
Saía leite por gentil torneira…

Exclamação geral; a grei se anima:
- O nome? O nome dessa obra-prima?!
- Uma vaca leiteira.



PEGA, POMBA E PAVÃO

Na festa natalícia do pavão,
Foram a pega e a pomba visitá-lo,
Fazer-lhe saudações, dar-lhe um regalo,
Aceitar-lhe o jantar… e a exibição.

Mas, no regresso, a pega, que de tudo
Maldiz, pôs-se a zombar da ave real:
- Que esganiçada voz, sem cor nem sal!
Pois não era melhor que fosse mudo?

- Não reparei, responde-lhe a colega.
- Pois, amiga, bem duro é o seu ouvido!
Viu ao menos as patas do bandido?
Que fealdade! – Não vi. – Então é cega!

- Que quer? Aquelas plumas são tão belas,
Maxime a cauda, que de quando em vez
Abre em garrido leque de chinês!
Atenta às graças, esqueci as mazelas.



A VOZ DO PAPAGAIO

Trocista que ela é! E como bem imita
Do papagaio a voz! Com que graça infinita…

Chama-se… Não direi. É das bandas di lá,
Desse país do sol, das palmas, do sabiá.

Não conhecem ainda a partida brejeira
Que fez ao retratista a nossa brasileira?

Por mero desenfado, eis que num belo dia
Se vestiu muito “chic”, foi à fotografia.

O artista a recebeu com palavras de mel.
Sinhá foi pôr-se em frente à objectiva fiel.

O homem preparou com muitos rapapés
A “pose” da freguesa, o cenário, os clichés…

- Ar de riso, sinhá! Mais abaixo essa mão.
 Olhar mais natural. Bem. Agora, atenção!

Mas oh, impertinência! Oh, surpresa dum raio!
Ouviu-se de repente a voz dum papagaio.

Foi sinhá… Foi sinhá que simulou aquilo
Tão dextra que ninguém pudera pressenti-lo.

Era uma voz mofina a chocalhar piadas,
Numa arrelia atroz que dava alfinetadas…

Era uma troça azeda, um flutuar de rabos
Pregados por um clown pior que dez diabos!

Em meio do trabalho, o fotografo pára,
Olha em volta de si para ver se sonhara…

Finge a cliente também ficar muito inquieta,
Num sobressalto mau, num enleio pateta.

Declara que não quer tirar o seu retrato
Enquanto ali galrar um bicho tão gaiato.

O pobre homem, febril, vai aqui, acolá,
Remexe em tudo, grita: “O pé, loiro, dá cá!”

Abre o armário, a suar. Põe tudo em marmelada.
Remira o quarto, a sala. E nada! Sempre nada…

- Mas eu dou em maluco! E lembrar-me que, em casa,
De aves eu nunca tive a pluma duma asa!

Sinhazinha gentil: não compreendo isto,
Não sei do papagaio. É caso nunca visto!

Decerto já fugiu. É melhor, sinhazinha,
Voltar à sua “pose”. Assim. Sossegadinha.

Cuidado: agora vai. Um... Dois… Malandrão!
Gargarejou de novo a voz do passarão!'

Como é que tinha entrado o infame tagarela?!
Tudo estava fechado: a porta e a janela!...

Seria Satanás? Sim, como tinha entrado
O “perroquet” garoto, esse grande malvado?!

Infortúnio de artista… Em fúrias a tremer,
Corre pelo salão. Pára. Torna a correr.

Sonda, espreita, fareja. Em vão. Está doente,
Tem a cabeça à roda. As pernas, nem as sente.

A tal ave maldita, incoercível, feroz,
Parece uma quimera, uma sombra com voz.

Para maior pesar, despede-se a sinhá.
Diz que se vai embora e que não voltará.

- Não vá zangada, não? Volte. Sou inocente,
Estas cousas enfim, que acontecem à gente.

- Pois seja. Voltarei. – Quando, Dona Leontina?
- Quando você matar essa ave mofina.

Foi-se. O artista quase teve um desmaio…
Quando veio a saber quem era o papagaio.

E um dia viu sinhá, que, a rir, lhe perguntou:
- O pássaro, o Sr. ainda o não matou?

- Vive ainda, o burlão. Não o posso matar.
Quando lá for sinhá, lá o há-de encontrar.

- Não o pode matar? – Não devo. – Isso é mau!
- É mauzinho, não nego… É pássaro bisnau!

- Pois, daguerreotipista, assim não vou lá.
- O pé, loiro, dá cá…

A CRUZ SORRIDENTE

Eu te saúdo, ó Cruz, altar bendito
Onde Jesus morreu por nosso amor!
Lição feita com sangue do Senhor,
A ensinar-nos a via do Infinito!

Porque é que, ó bela Cruz, eu não imito
As almas que, a esvair-se em triste dor,
Choram a imolação do Redentor
Nos teus braços? Minha alma é de granito?

Oh, não!... que eu bem sei porque não choro:
Se é certo, cruz divina, que eu te adoro –
Sorri-me em ti dos céus a ideal visão.

Tu deste-nos a luz: eu amo-a tanto!
Tu deste-nos a graça: é dom tão santo!
Como hei-de chorar, dize-me então?

Lágrimas!... Convém muito que as poupemos
E que as nossas tolices deploremos
Em vez da Redenção…

(Im. do P.e Bourdaloue)


JESUS E A ADÚLTERA

I

RÉUS ACUSADORES

- Esta mulher que pena há-de sofrer,
Ó Mestre? Em adultério foi achada!
E Jesus a escutar, sem dizer nada,
No chão as culpas deles a escrever.

- Instrua-nos, Doutor, teu parecer.
Deve ser em castigo lapidada,
Conforme preceitua a lei sagrada?
Tudo ouvia Jesus sem responder...

Por fim ergueu-se e disse glacialmente:
- Quem dentre todos vós for inocente
Deve a primeira pedra arremessar.

Num desapontamento os fariseus
Foram-se desviando do Homem-Deus,
A quem já não queriam consultar…

II

PERDÃO SUBLIME

Ali ficou de pé, junto ao seu Deus,
A adúltera chorosa e arrependida:
A miséria e a bondade; a morte e a vida;
A noite do pecado e a luz dos céus.

Do seu rigor enfim depondo os véus,
Disse Jesus em voz compadecida:
- Onde essa gente ruim e presumida,
Que contra ti moveu tais escarcéus?

Ninguém te condenou, mulher? – Ninguém,
Meu Mestre e meu Senhor! – Pois eu também
Não te condeno. Vai. Não peques mais.

- Quando a santa, mais tarde, referia
O que Cristo dissera, não havia
Quem percebesse coisas tão astrais.





Núpcias de Caná

Aos noivos Francisco Meira Veloso e Otília Laura Diniz

I

De flores coroada,
Gentil como a alvorada,
Sob cândido véu soltos e flutuantes
Os cabelos de ouro, um pálio a protegê-la,
Tal como a uma rainha – aí vai, entre os descantes
Da alegre comitiva, a noiva de Simão.
Que graça! Vinde vê-la:
Não é gentil realmente?
Como sorri contente
A filha de Israel, rosinha em botão!

Pela avenida em festa onde a noite desmaia
Ao clarear dos brandões, com que desordem gaia
Trombetas e flautins, címbalos e tambores
Convidam a cidade aos júbilos, ao riso!
Em volta da esposada, as amigas, levando
Numa das mãos a lampa acesa, na outra flores,
Vão dançando, dançando,
E chovendo sobre ela o melífluo granizo
Das frases de louvor qua a alma feminina
Raramente declina…

E o cortejo lá segue. Aonde vai a nubente?
Pérola da Caná, diz-me: aonde vais?
Para casa do noivo. O seu futuro esposo
A espera impaciente…
De joelhos recebida a bênção de seus pais,
Ao ninho paternal disse um adeus saudoso –
E uma nobre missão ela vai realizar:
Construir um lar
Puro e santo e bendito.

Chega. É apresentada. Um denso véu recebe;
Na escritura se confirma a ditosa promessa;
Procede-se em seguida às abluções do rito;
De vinho se enche um copo e todo o mundo bebe;
Uma oração enfim… e o banquete começa.

II

Regressando a Caná,
Jesus foi convidado à festa nupcial.
Maria estava lá, que o noivo era seu sobrinho…
Aceitou pois Jesus o convite cordial:
Dignou-se ser padrinho
Do enlace conjugal;
Quis com a sua presença as puras alegrias
Da família sagrar numa aurora de amor.
Não vinha só no entanto o nosso Salvador:
Convidaram também com nobres cortesias
Pedro, Bartolomeu, André, Filipe, João…
Crescida a soma, assim, de hóspedes, por surpresa,
E como o bom casal não brilhasse em riqueza,
Depressa se esgotou do vinho a provisão…

Maria, sa santa Mãe, Maria, o coração
Transbordando carinho,
Dos noivos pressentiu a vergonha, o pesar.
E a Jesus segredou em prece: - Não há vinho.
- Deixe o caso comigo – advertiu docemente
O Filho divinal. – Vou tudo remediar,
E tu serás contente, minha Mãe e Senhora!
Se a graça ainda não fiz, é que não era a hora
De tornar evidente
Ao clarão de um milagre, a missão que do Pai
Recebi, vido ao mundo.
Aos serventes então diz ela: - Executai
Tudo o que ele disser.

                                   Expectativa. Ao fundo
Da sala do banquete há seis talhas vazias…
- Ide, ordena Jesus, encher de água essas talhas.

Quase despida já a mesa de vitualhas,
Ao provar o licor que evocava ambrosias,
Ficou o arquitriclino altamente admirado
De que o vinho melhor o tivessem guardado
(E tanto!) para o fim…
Presidia ao festim
E o milagre não vira:
Apenas os serventes
E a Virgem, que a pedira,
Da graça eram cientes…

19-V-1923